O Blaxploitation ficou conhecido como o gênero de cinema que mostrava os guetos negros dos EUA nos anos 70, levando para as telas de todo o país a maneira de eles se vestir, falar, ouvir música, enfim, toda a cultura negra na cidade grande e a forma de resistir a uma cena de repressão, segregação e racismo que vinha de longe
Esses filmes ganharam características próprias, eram dirigidos e interpretados por atores negros, tinham trilhas sonoras sofisticadas e fantásticas, compostas por alguns dos maiores artistas da época e abarcavam muito mais coisa do que se pode ver à primeira vista. “Os filmes blaxploitation geralmente têm um herói ou heroína afroamericano que atua à margem das instituições e da lei. Para vencer suas batalhas, o herói blax jamais recorre à polícia ou a qualquer outro aparelho governamental, mas sim a grupos de ativistas negros, como o Panteras Negras.
Nos filmes, nenhuma instituição oficial é confiável ou tem interess e legítimo pelo que se passa nas comunidades afroamericanas. Os problemas das comunidades negras só são resolvidos pela ação direta d os próprios membros de ssa comunidade” , explica o produtor cultural Zeca Azevedo, c olecionador de filmes do gênero.
Para ele, a origem do blaxploitation está lá atrás, nos acontecimentos que transformaram a vida dos afroamericanos no século XX, como o grande movimento migratório dos negros do sul segregacionista para os centros urbanos do norte, que também viviam em climas e gregacionista, porém, mais velado. A partir daí surgiram as grandes comunidades negras, mais tarde transformadas nos guetos retratados pelos criadores do cinema blaxploitation. O resultado desse êxodo foi o aparecimento da música antes do cinema negro. “A indústria musical, cujo principal produto, o disco, requer gastos de produção bem menores que os de um filme, saiu na frente e registr ou com sucesso as vozes negras desde o início. O blues e o jazz se tornaram rapidamente o esteio da indústria fonográfica norte- americana.
A presença das vozes afroa-mericanas nas rádios e nos aparelhos de reprodução de discos pelo mundo afora mostrou a capacidade dos artistas negros de ocupar grandes espaços na cultura industrial, mas a indústria cinematográfica decidiu, com pequenas exceções, ignorar a e xperiência social e o talento dos artistas negros durante cerca de 50 anos”, conclui Zeca.
UM NOVO FILÃO
Um anseio e uma pressão não declarados já pediam pelo aparecimento de um movimento que retratasse a sociedade afro-americana nas telas de cinema em uma cultura que adquiriu um domínio tão completo da arte cinematográfica. O surgimento da briga pelos direitos civis e o basta que a comunidade negra queria dar à segregação racial foram importantes para isso, um processo que começou nos anos 50, e só ganharia a tela de maneira definitiva em 1971.
Apesar de experiências anteriores com produções com diretores e elenco totalmente negros (o primeiro filme assim data de 1919 e se chama The Homesteader), foi a aventura pessoal empreendida pelo fotógrafo e ativista Melvin Van Peebles, que é considerado o marco zero do blaxploitation. A produção Sweet Sweetback’s Badaaasss Song reunia pela primeira vez todas as características que definiram o gênero: produção independente de baixo orçamento, tendo como personagem principal um anti-herói negro em conflito com o poder estabelecido. E claro, uma trilha sonora matadora do Earth, Wind and Fire. Para o músico Ed Motta, fã assumido deste tipo de filme, a coisa também tem outra fonte de origem.
“Acho que os próprios filmes definidos como exploitation, de diretores como Russ Meyer, que dirigiu coisas como Faster, Pussycat! Kill, Kill!, com suas cenas de violência, mulheres armadas, inspiraram o surgimento do blaxploiation”, diz Ed, mas concorda que Sweet Sweetback’s Badaaasss Song foi fundamental para que o gênero fosse aceito e assimilado. “Foi emblemático por ser progressista, o primeiro. Esses filmes mostravam a verdade dos anos 1970 dentro da comunidade negra, um retrato de seus costumes e hábitos. Eu já curtia a música e foi mais um contato com isso que eu era fissurado”.
A partir do filme de Melvin Van Peebles, e com a porta aberta graças às filas que o público formou nas portas dos cinemas para assistir a obra, a indústria cinematográfica percebeu que havia ali um nicho a ser explorado e abriu suas portas para que outras produções do mesmo estilo surgissem e a sequência de títulos se tornou longa, com filmes – alguns muito bons, outros nem tanto – surgindo na esteira dessa nova descoberta. Mas uma coisa que era quase unanimidade eram as ótimas trilhas sonoras que apareceram. “Claro que alguns filmes eram melhores que os outros, e esses se sustentam, tinham bons enredos e tudo mais. Nas trilhas foram as primeiras produções a darem chance para os grandes arranjadores de jazz e soul no cinema. Antes disso, só Quincy Jones havia aparecido. Esses filmes refletiam a importância da música nas comunidades negras”, conta Ed Motta.
MÚSICA VERSUS CINEMA
O choque entre as trilhas sonoras muitas vezes elaboradas, e a crueza de alguns filmes podem ter dado a muita gente a impressão de que as grandes estrelas dessas produções são as músicas, mas nem sempre é isso. Para Zeca Azevedo, os filmes se bastam, independentes das trilhas, ao registrar o modo de ser e das condições dos negros nos EUA. “Há um choque entre a sofisticação da música e o aspecto ‘rude’ de alguns filmes blax. Isso aconteceu porque os negros já atuavam com destaque n a in dúst ria f o nog ráfica há 70 anos ou mais, enquanto no cinema a existência de afroamericanos em posições de poder era muito recente.
Os negros norte-americanos tinham menos familiaridade com a linguagem cinematográfica do que com a musical. Talvez por isso tenham criado filmes com características muito particulares, distantes dos vícios narrativos de Hollywood.” Na lista de nomes que gravaram trilhas para esses filmes, está uma verdadeira enciclopédia da música negra norte-americana. Artistas populares de soul como James Brown (em Black Caesar), Marvin Gaye (em Trouble Man) e Edwin Star (em Hell Up Harlem) convivem com outros de jazz como Grant Green (em The Final Comedown) e J.J. Johnson (Cool Breeze). Entre as produções que se de staca ram nos anos seguintes, estão a trilogia Shaft, Shaft’s Big Score e Shaft In America, com o primeiro dele ganhando a que talvez seja a mais famosa trilha dentro do gênero, composta por Isaac Hayes.
Ed Motta se lembra da influência que essa música teve para ele. “Foi a primeira vez que ouvi uma guitarra com efeito ‘wah wah’, logo na música tema do filme. Eu vi todas essas produções, tomei contato com isso nos anos 80, nas sessões de madrugada na TV. Hoje tenho tudo o que consegui enc o ntr ar em DVD”, diz o músico, que ainda lembra que quando morou nos EUA, nos anos 90, precisava ir a bairros específicos para encontrar es ses filmes, muitas vezes não lançados oficialmente.
OUTROS TEMAS
Mas não eram só os temas policiais que o gênero abraçava. Tinha a comédia romântica Claudine, o drama com tema sério Bucktown, a comédia Car Wash, o musical Sparkle e até coisas mais polêmicas, como Superfly (com uma das mais famosas trilhas do gênero, composta por Curtis Mayfield) e The Mack (outra grande trilha de Willie Hutch), ambos com protagonistas imorais: um traficante e um cafetão. Mas poucos superam, nesse quesito, a produção Black Gestapo que, segundo Zeca Azevedo, é “uma obra que leva o revanchismo racial a extremos. Ver uma milícia negra usando uniformes e utilizando práticas nazistas é de revirar o estômago, mas com certeza se trata de mais uma das contradições da nação afro-americana”.
Mais uma marca de como o cinema blaxploitation conseguiu refletir sobre os conflitos da comunidade negra norte-americana, já que muitas dessas produções, ao mesmo tempo em que exaltavam a cultura da raça, também reforçavam alguns estereótipos. “O cinema trabalha com catarse, com projeção psicológica e com identidade social. Para um grupo que vivia (e em grande escala ainda vive) à margem da riqueza dos EUA, o cinema blaxploitation foi, ainda que de forma incipiente, um tipo de inclusão social”, conclui Zeca.
ASTROS E REFERÊNCIAS
Outro fator que contribuiu para essa afirmação negra ascendente foi o surgimento de novos astros, em um campo que ainda não existia. De repente, até mesmo as crianças se viam refletidas em alguns desenhos que mostravam a comunidade e os personagens negros, como os de Jackson Five e Globetrotters, fruto direto da conquista desse novo espaço visual. Estrelas como Pam Grier, atriz de Foxy Brown, Coffy e Sheba Baby , é uma delas, lembrada até hoje e protagonista do que talvez seja o último filme que conserva as características do gênero, Jackie Brown (1997), de outro fã famoso de blaxploitation, Quentin Tarantino.
“Esse é um dos melhores filmes de blaxploitation na minha opinião. Na época esses filmes eram vistos como inferiores, e o reconhecimento veio mais tarde justamente quando Tarantino chamou essas pessoas de novo para filmar. Também vi pela primeira vez em uma produção assim o ator Lawrence Fishburne (famoso pela trilogia Matrix) chamada Cornbread, Earl and Me”, lembra Ed Motta, que também lista Cotton Comes to Harlem e Cool Breeze, entre os seus favoritos.
Se hoje em dia existem atores e diretores negros de sucesso, em produções – grandes ou pequenas – mas representativas, muito se deve a esse cinema que forçou a aceitação de uma cultura marginalizada ao mostrar aos donos do poder que também era possível ganhar dinheiro fora dos planos estabelecidos. Ainda que seja difícil encontrar boa parte desses filmes no Brasil, alguns poucos podem ser achados. Vale, no mínimo, aceitar a dica de Zeca Azevedo e “explorar sem medo o universo das trilhas blax. Há mais recompensas do que decepções nessa aventura.”
http://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/156/artigo221157-1.asp